sexta-feira, 28 de junho de 2013

Um homem chamado AMOR!!!

28/06/2013 | SÃO PAULO

"Quando se sonha tão grande a realidade aprende"

Ex-morador de rua, Robson Mendonça encontrou na literatura uma parceira para mudar não apenas sua vida, mas a de muitas pessoas em situação de rua. Biblioteca itinerante instalada em uma bicicleta é uma das ações coordenadas por ele
Notícia publicada na edição de 28/06/2013 do Jornal Cruzeiro do Sul, na página 1 do caderno C - o conteúdo da edição impressa na internet é atualizado diariamente após as 12h.

Maíra Fernandes
maira.fernandes@jcruzeiro.com.br 

Em seu escritório-biblioteca-casa, instalado em uma sala simples e pequena no Centro do São Paulo, Robson Mendonça recebe imprensa, parceiros e pessoas em situações de rua sem requintes de cerimônia, mas com a mesma atenção. Interrompe a conversa de cinco em cinco minutos para ir ao banheiro e explica: culpa dos remédios. Aos 64 anos, o homem que muitas pessoas, principalmente as que vivem nas ruas, chamam de pai, elenca uma lista de doenças que o acometeram ao longo dos anos: trombose, bursite, tumor cerebral, câncer pulmonar, entre outras. Tirando o tumor, resultado de um tombo enquanto tentava domar um cavalo chucro, ainda quando morava em Alegrete (RS), os demais já foram resultado dos seis anos vivendo nas ruas de São Paulo, aliados ao cigarro, que levou um dos seus pulmões, e castiga o outro que restou. Mesmo assim, afirma que a coisa principal que as ruas tiram das pessoas não é a saúde, mas a autoestima, a dignidade, além de deixá-las fragilizadas para uma nova inclusão social. "É fácil você tirar a pessoa da rua, difícil é você tirar a rua dele", defende ele, lembrando que quando alugou o seu primeiro quarto, a burocracia com o pagamento de aluguel, água, luz foi traumatizante. 

No local onde recebe pessoas, cria e discute projetos, e divide a vida com dois filhos adotivos e um gato cuja cabeça é desproporcional ao corpo - por isso chamado de Cabeção -, ainda há espaço para as prateleiras repletas de livros de variados autores, dos mais distintos gêneros, e muitas condecorações como placas e medalhas de Honra ao Mérito emitidas por instituições como a Ordem dos Músicos do Brasil (OMB) e Câmara Municipal de São Paulo. Mas não é para elas que ele pede a atenção, e sim para os muitos desenhos colados nas paredes - presentes de amigos - e folderes de projetos que, o dia todo, escreve em seu computador. O modelo do PC é antigo, mas a destreza de Mendonça é similar a de um garoto nascido já na época da sociedade em rede. "Passei quatro dias parado em frente de um computador. Depois procurei aprender, mas por curiosidade", conta ele, que é motivado mesmo por desafios. 

Estar criando e executando tantos projetos é como uma morfina contra aquela dor que mora na lembrança, já que quando resolveu tentar a vida em São Paulo, passou pelas situações mais doloridas e decisivas: além de perder todo dinheiro que tinha e passar a viver nas ruas por seis anos, perdeu a mulher e um casal de filhos - que ficaram no sul e viriam depois - em um acidente de carro. Depois de destituído de tudo aquilo que considerava importante, teve que se reinventar. "Às vezes é preciso perder tudo para conseguir mais do que aquilo que o dinheiro pode te dar", ensina ele, que fez da cultura sua aliada e dos livros seus mais fiéis parceiros e professores. 

A revolução dos homens 
Foi uma ideia simples, porém ousada, responsável pela mudança radical na vida de Robson Mendonça. Ex-pecuarista e ex-ginete, nome que se dá à pessoa que amansa cavalos chucros no interior do sul do país (e cuja função é exatamente a de fazer sobressair a inteligência do homem, frente a força do animal), Robson Mendonça um dia se viu na situação contrária: de bicho, metaforicamente. Vítima de um assalto logo que chegou em São Paulo para abrir um negócio e mudar de vida, longe de casa, se viu nas ruas da maior metrópole do país. Sem dinheiro, sem documentos, sem teto e sem as condições básicas de vida, sentiu o gosto amargo da invisibilidade e, o que lhe pareceu bem pior, o descaso do próprio Poder Público com as pessoas em situação de rua, independentemente dos motivos que a levaram até lá. 

Um dia, resolveu reivindicar sua existência e escreveu um ofício para a Secretaria de Assistência Social de São Paulo, denunciando a situação nas ruas e solicitando melhorias nos albergues que abrigam as pessoas que não têm onde morar. A resposta só comprovou a deficiência dos órgãos oficiais frente a esse tema. "Eles disseram que eu precisava, primeiro, aprender a escrever, para depois fazer um ofício", conta o homem que de estudo tem "o ABC e a Cartilha", e que recebia e enviava informações de forma oral, através de um programa de rádio rural da região onde morava, chamado de Vozes rural. Mesmo assim, aturdido com a resposta, tomou-a como uma provocação e foi aprender a escrever para poder reivindicar e fugir das armadilhas da rua. 

Na primeira tentativa, foi impedido pela burocracia. Como é de praxe que uma biblioteca peça dados das pessoas como CPF, RG e comprovante de residência para viabilizar o empréstimo, poucos se dão - ou davam - conta de que esse último detalhe impossibilita que pessoas em situação de rua usufruam desse serviço, por mais pública que seja a biblioteca. Mas Mendonça não se acomodou, mesmo incomodando olhos domesticados que não entendiam e não aceitavam a presença de um morador de rua maltrapilho ao seu lado da mesa de leitura e levantavam sem cerimônia para outro lugar. Ele passou a ter no livro um companheiro ante a solidão das ruas, e depois, um aliado. 

Certo dia, na minibiblioteca de um albergue em que se abrigava, caiu em suas mãos um clássico da literatura mundial, a fábula A revolução dos bichos, de George Orwell. Lançado em 1945 e tido para uns como uma crítica ao stalinismo, o livro narra o dia em que os bichos de uma propriedade se conscientizaram de que estavam sendo explorados e resolveram virar o jogo, expulsando o fazendeiro de sua propriedade. A intenção dos bichos era fazer um Estado em que todos seriam iguais. Cansado da situação de invisibilidade que se encontrava, Mendonça tomou a fábula de Orwell como exemplo para uma guinada em sua vida e na de muitas pessoas. "Pensei: se os bichos, que são irracionais, conseguiram se organizar e mudar uma situação, por que nós, que somos animais racionais, também não conseguiríamos?", e deu início a sua revolução. 

Biblioteca para todos 
Junto com companheiros na mesma situação de rua, Mendonça então se mobilizou e criou, no ano 2000, o Movimento de pessoas em situação de rua, cuja ideia é defender os direitos e interesses dessa população. Para essa "briga" frente aos órgãos que tanto legislam quanto executam, Mendonça se empenhou mais ainda em suas leituras, a ponto de ter conhecimento sobre leis específicas. Uma das principais bandeiras desse movimento, que ainda ganhava corpo no início dos anos 2000, era, justamente, de possibilitar que as pessoas em situação de rua tivessem acesso ao mundo dos livros e fossem contaminados pela literatura, do mesmo modo que o próprio Mendonça foi. "Um país só consegue sua autoindependência e equilíbrio econômico e social através da cultura", defende. 

Essa luta ganhou força quando conheceu o empreendedor Lincoln Paiva, dono de uma consultoria voltada para projetos de mobilidade urbana. Ele abraçou a ideia de Mendonça de levar literatura àqueles que não podem realizar empréstimos de livros nas bibliotecas por não possuírem comprovante de residência, mas pensou que o meio para essa ação poderia ser uma bicicleta. E assim nasceu, há dois anos, o projeto Bicicloteca - Um livro pode mudar a sua vida, que se trata de uma bicicleta itinerante montada em um triciclo que possui um baú para carregar os livros, e leva livros gratuitos para as pessoas em situação de rua. 

A suspeita de Mendonça estava certa. Logo nas primeiros dias, o projeto caiu nas graças daqueles que estavam nas ruas. Não demorou para que estudantes e outras pessoas também passassem a usufruir da biblioteca que apesar de não ter burocracia e não exigir a devolução dos livros - mas sugerir que sejam passados para frente, caso não devolvam - tem um percentual de devolução superior ao das bibliotecas comuns, chegando a mais de 90%. Daí, foi um pulo para que a imprensa do Brasil e do mundo passasse a prestar a atenção no empreendimento. 

"Nunca pensei que eu viraria um pop star", brinca ele, lembrando que, quando roubaram sua primeira "bicicloteca", o assunto virou pauta nos principais jornais impressos e telejornais nacionais e mundiais. A rede londrina BBC, o francês Le Monde, imprensa japonesa, entre outras, noticiaram o fato que teve final feliz. 

A "bicicloteca" foi encontrada. Mas o que é melhor: com a exposição na mídia, empresas se sensibilizaram com a ação e financiaram um modelo mais moderno para o projeto, elétrico, com acesso à internet e até placa solar, também batizada de "tricicloteca". Hoje, já são 23 modelos levando livros que recebem de doações dos mais distintos locais do Brasil e do mundo, diariamente para diferentes regiões da cidade, para a realização e felicidade de Mendonça, que não para. Antes de qualquer prosa, ele gosta mesmo é de contar dos outros projetos coordenados por ele como o Pedal social, que empresta bicicletas para pessoas que não têm condições de pagar pelo transporte chegarem ao seu local de trabalho. Esse projeto também não tem burocracia, basta que a pessoa cadastre nome e itinerário que faz. Ao todo, são 10 bicicletas à disposição que podem ser utilizadas por um mês ou mais, depende da necessidade. "Trabalhamos tudo o que se refere ao resgate, a autoestima dessa população e a sustentabilidade. Há muito desperdício e muita coisa para se fazer." 

Também há parceria entre o movimento, hoje uma ONG, com a Fundação Casa para prestação de serviços e estágios, além de outros tantos como uma parceria com empresas para que as pessoas em situação de rua ou sem condições, realizem o trabalho de lavagem de carros. O trabalho de Mendonça inclui ainda várias ações e eventos, também para promover e devolver a autoestima da população de rua, como show de talentos, onde cantam, dançam, tocam, declamam e ainda são premiados com medalhas e uma confraternização. "Agora vamos realizar o 1º Miss Rua, entre mulheres e travestis também, pois não temos preconceito", sentencia ele, que reforça a importância das parcerias em suas ações que já conquistaram vitórias importantes como a Lei para Moradores de Rua decretada em São Paulo. "Estou na ponte entre Deus e o Diabo, pois encarar a falta de interesse do Poder Público é o inferno, mas a sensibilidade das pessoas à causa é o céu." 

A ideia de Mendonça é estender seus projetos para além de São Paulo e do Brasil e ver as questões referentes às pessoas em situação de rua sendo debatidas e pensadas de uma forma que vise a capacitação profissional dessas pessoas, emprego, saúde, moradia e o restabelecimento dos vínculos deles com as famílias. Não é à toa que uma das frases que mais fala e que mais gosta é a do escritor angolano, Valter Hugo Mãe: "Quando se sonha tão grande a realidade aprende". 

Serviço 
Para saber mais da ONG Movimento de Pessoas em Situação de Rua e ajudar nos projetos, mais informações no site:http://biciclotecas.wordpress.com/.